[Divagações] - Uma prova de amor entre espinhos


A lua banhava as ruas daquela cidade deserta com seus raios prateados fazendo com que qualquer um que a visse de longe imaginasse que todos estivessem presos em seus sonhos, mas quem pensasse dessa maneira estaria completamente enganado. Guerreiros e mulheres daquele local espremiam-se em uma de suas tavernas para comemorar a vitória recém obtida: eles haviam conseguido sequestrar o líder de um grande Clã que ameaçava destruir o reinado de terror dos bandidos daquele local.

Todos estavam tão confiantes de que o Clã inimigo abalado com a perda de seu líder não ousasse fazer nada tão cedo, tanto que apenas uma pessoa havia ficado na prisão de pedra para vigiar aquele homem, no entanto o carcereiro agora dormia num sono profundo enquanto uma figura caminhava pelos corredores da prisão nas pontas dos pés rindo do quão fácil havia sido colocar aquela criatura para dormir. 


“Ervas certas na água, bem que minha vó dizia que ninguém seria capaz de imaginar.” 


As celas e os corredores ganhavam um tom amarelo sombrio das velas usadas para a iluminação daquele local, isso fazia com que um arrepio percorresse sua espinha, mas já havia ido longe demais para desistir, aliás, havia prometido para si que não deixaria seu líder sozinho desde o dia em que o havia encontrado, embora não fosse capaz de fazer muita coisa como a simples curandeira que era. Não demorava muito para avistar o jovem que comandava o Clã em uma das celas sentado no chão e com os pulsos presos por correntes penduradas a parede, seja lá quem o havia capturado certamente ouvira as histórias sobre aquele rapaz e queria garantir que não se soltaria tão fácil. Um clique ecoou por todo o local quando o cadeado da cela foi aberto, em passos lentos ela se aproximou o suficiente para ver o sangue seco e os ferimentos que cobriam o corpo do rapaz. 

— Você veio — sua voz era tão fraca que mal podia ser ouvida. — Deveria ter ficado com os outros. 

Ela não se deu ao trabalho de responder, outro clique foi ouvido e as mãos do rapaz foram de encontro ao chão ao serem soltas, em seus pulsos era possível ver a marca de quem havia se debatido por horas na esperança de se libertar de seu cativeiro. 

— São muitos ferimentos, — ela passava os dedos levemente pelas feridas do pulso do rapaz enquanto observava os demais ferimentos espalhados por seu corpo. — Não tenho tempo para cuidar disso, por favor, aguente até estarmos em um local seguro. 

O rapaz tentava dizer algo, mas mais uma vez sua voz havia falhado. Um tanto quanto sem jeito a garota dava apoio para o seu líder e o arrastava pelos corredores daquela prisão de pedra até a saída. Tudo havia sido tão fácil, fácil demais, diga-se de passagem, e aquilo começava a atormentá-la de uma maneira estranha, como se estivesse prevendo o que viria a seguir. 

Em meio a uma caminhada lenta ela podia ouvir o bater suave de asas e olhando para o céu pode ver a silhueta de uma coruja iluminada pelo luar, seus olhos se estreitaram ao perceber que a ave voava em sua direção fazendo como se estivesse para pousar, mas a poucos metros do chão ela havia se transformado dando lugar a uma garota trajando um vestido azulado e a pele tão pálida quanto os raios do luar. 

— Você deveria aprender a não roubar o que pertence aos outros, mocinha — mal terminava de dizer tais palavras num tom áspero e um som agudo saia através de seus lábios, o barulho era tanto que não demorava para que todos os homens que comemoravam na taverna viessem ao seu encalço e ficassem parados atrás da mulher que parecia ser sua líder. — Bem, se me devolver ele agora eu prometo que nada demais vai acontecer com você. 

O corpo da curandeira agora ficara completamente tenso. Quando traçou seu plano não imaginava que havia alguém com aquele tipo de poder para atrapalhá-la e agora não sabia o que fazer. O jovem em seus braços se esforçava para dizer algo com a pouca força que lhe restava, no entanto tudo o que a jovem conseguia ouvir era seu respirar fraco. 

— Quando eu te encontrei ferido da primeira vez prometi a mim mesma que não permitiria que voltasse a ficar assim novamente e olhe como você está agora — era impossível para a jovem curandeira conter as lágrimas, elas escorriam por sua face e pingavam através de seu queixo fazendo com que a visão da grande parede de inimigos ficasse embaçada. — Os outros queriam esperar mais, mas eu sabia que estava ferido e vim até aqui sem consultar ninguém, me desculpe por ser tão fraca. 

Mesmo em meio as lágrimas ela não abaixava a cabeça perante os inimigos, com espadas, machados e lanças em mãos eles pareciam impacientes, assim com a dama que soava o alarme para avisá-los da fuga. Um silvo foi ouvido, seguido de um gemido de dor vindo do jovem apoiado em seu ombro, entre lágrimas a curandeira pode ver que uma flecha havia sido cravada em seu ombro e enquanto ela examinava o ferimento e o sangue que dele escorria ouviu a voz impiedosa da dama que a condenara. 

— Então é isso o melhor que esse rapaz pode ter? Uma curandeira que nem sabe como se defender, isso é decepcionante — o desdém em sua voz podia ser notado de longe. Um barulho de passo pode ser ouvido antes que ela continuasse a falar. — Vou matá-lo diante de seus olhos e você nada vai poder fazer sua tola. 

Os guerreiros que recuaram ao final de suas palavras das palavras da donzela de azul, dando a entender o quanto ela era temida. A indefesa curandeira voltou a observá-la entre suas lágrimas e pode ver que havia um arco em sua mão com uma flecha apontada na direção do jovem líder e pronta para atirar. Em meio ao respirar pesado do rapaz ela pode ouvir palavras que saíram de seus lábios com muito esforço. 

— Eu confio em você, — uma pausa acompanhada de um respirar profundo, os segundos pareciam passar como horas para a jovem que o amparava enquanto ele tentava dizer mais alguma coisa. — Você já fez muito por mim antes, acho que devia fazer algo por si mesma e me deixar aqui. 

Mais uma flecha foi atirada antes que a curandeira pudesse dizer algo acertando o abdômen do rapaz que soltava mais um grito. A risada da dama pálida ecoava pela cidade onde o silêncio ainda continuava absoluto fazendo com que os pelos do corpo da outra jovem se eriçassem. Um misto raiva e medo tomavam conta dela, que no final das contas sentia mais raiva da sua ingenuidade do que qualquer outra coisa. Mais um silvo, mas antes que a flecha pudesse se cravar no corpo de seu líder a curandeira se enfiava em seu caminho, pouco se preocupando consigo mesma e com a dor que viria a seguir. 


“Eu confio em você”


Aquelas palavras ecoavam em sua mente fazendo com que sua cabeça doesse mais do que a perna atingida pela flecha. As lágrimas escorriam com mais intensidade por sua face pingando no chão. Ela sentia uma das mãos do líder tocando seu queixo antes de seu corpo ir de encontro ao chão. Uma de suas lágrimas escorria deixando um traço prateado em seu rosto, parecia ter absorvido a cor da lua e quando aquela pequena gota de sofrimento tocou o chão abriu um buraco como se estivesse carregando consigo o peso do mundo. 

— Eu não vou desistir, — ela falava entre os dentes enquanto via uma nova flecha ser apontada em sua direção. — Eu serei mais do que uma simples curandeira, eu serei orgulho da minha família nem que para isso eu tenha que perder minha vida. 

Um grito escapou de seus lábios e do buraco formado por sua lágrima algo o tronco grosso de uma árvore se ergueu a tempo de receber a flechada destinada a jovem. Assim que a jovem fechou suas mãos galhos semelhantes ao de roseiras se ergueram abaixo dos pés de cada um dos guerreiros parados a sua frente e também da dama que a desafiara, se enrolando no corpo de cada um e fazendo com que gritos de dor e agonia ecoassem pela cidade. Quanto mais ódio ela sentia, quanto mais apertava suas mãos, mais os galhos se enrolavam ao redor de cada uma daquelas pessoas, até que finalmente as únicas coisas que poderiam ser vistas ali eram poças de sangue e caixões feitos de espinhos espalhados pelas ruas. 

— Perdoe-me por permitir que as coisas chegassem a esse ponto — ela caia de joelhos no chão e pouco depois seu corpo caia por cima de seu líder. 

Em uma tentativa desesperada de salvar aquele que amava a Rainha dos Espinhos acabava por despertar. Sua energia havia sido consumida por completo, a garota se sentia prestes a desmaiar e era capaz de ver o rosto de seus familiares e pessoas de sua aldeia desdenhando da incapacidade de ter habilidades especiais. Ela não sabia se despertaria outra vez, o silêncio da noite parecia tão aconchegante que ela queria fechar os olhos e dormir, mas ao invés disso colocou o seu corpo para fazer um esforço descomunal de se manter em pé e começar a pelo menos estancar o sangue do rapaz ferido ao seu lado, afinal de contas, sua jornada estava apenas começando e certamente o caminho para casa seria longo...


Nota da autora: Esta história foi adicionada ao meu perfil do Social Spirit em 16 de fevereiro de 2016.

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